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Terra, memória e insegurança: o conflito que ameaça centenas de famílias no Mato Grosso


Foto: Pedro Silvestre/Canal Rural Mato Grosso

As novas homologações de terras indígenas assinadas pelo governo federal acenderam um alerta entre famílias que há décadas construíram suas vidas no interior de Mato Grosso e hoje geram emprego e renda para quem mora na cidade. O Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea) calcula prejuízos milionários que podem ultrapassar os R$ 170 milhões em produção agropecuária e provocar o fechamento de quase 500 postos de trabalho. Mas, para quem vive nessas áreas, a maior perda não cabe nos relatórios: é o medo de ver a própria história deixada para trás.

Em Brasnorte, a propriedade de Valdir Pedro Orso é parte da trajetória construída ao longo de mais de 40 anos. Nos 2.950 hectares mantidos no sistema de Integração Lavoura-Pecuária, cada estrutura carrega um pedaço dessa memória. Ele lembra que todas as aberturas foram feitas nos anos 80, com licenças emitidas à época, incluindo uma autorização do Ibama de 1983.

“Fomos formando pastagem, abrindo, até eu tenho uma licença do Ibama de 1983 para a abertura da área, que eu paguei as guias. Hoje a gente está com uma estrutura consideravelmente boa, só que aí veio esse impasse”, conta. Ele percorre a própria história ao citar a sede, os pés de manga plantados há 44 anos, o barracão de 1,5 mil metros, as duas casas, o curral e os 50 quilômetros de cerca. “É uma história. Ah, não, porque eu vou te pagar. Mas e daí? Eu não vendi, gente, eu não vendi. Todo dinheiro que me der é pouco”.

O produtor descreve o sentimento de perda como algo irreparável, comparando-o a um luto. “É como morrer uma pessoa. Você sente aquele sentimento que foi embora. É o que está acontecendo com nós. (…) Eu vou pegar minhas traias lá e levar para onde? É como alguém chegar e dar um tiro no teu pai e matar teu pai”, desabafa. Para ele, a esperança está no cumprimento da Constituição: “Essa lei que está escrita aqui tem que valer. Se ela não valer, acabou. Aí vão enterrar meu pai”.

Foto: Pedro Silvestre/Canal Rural Mato Grosso

Outro produtor do município, Flávio Giacomet, também vive a incerteza. Ele trabalhava com manejo florestal sustentável em aproximadamente cinco mil hectares, atividade que gerava cerca de 30 empregos diretos.

O produtor afirma ter adquirido a área legalmente e conduzido o manejo conforme as normas técnicas — tanto que, após o embargo da atividade, registrou boletins de ocorrência para denunciar furtos de madeira dentro da propriedade, na tentativa de proteger a área e manter o controle ambiental.

“Comprei de uma pessoa, tenho documentação e tudo, mas eles entendem, eu acho, que tu tomou dos índios. Eu não tenho patrimônio, não tenho abertura de área lá, porque eu mantive (…) como eu tenho na matrícula que eu tenho um manejo sustentado e que eu não posso, eu tenho que deixar preservado lá”, explica à reportagem do Canal Rural Mato Grosso.

Impacto que ultrapassa fronteiras das propriedades

Dados do Imea mostram que somente em Brasnorte há cerca de 250 mil hectares na área de expansão da Terra Indígena Manoki. Dentro desse território estão 871 hectares de soja, 2,4 mil hectares de milho segunda safra e um rebanho de 44 mil cabeças, com mais de 15 mil animais abatidos por ano. O movimento econômico supera R$ 80 milhões anuais e sustenta 242 empregos diretos.

A preocupação é compartilhada por entidades locais. O presidente do Sindicato Rural do município, Sandro Manosso, resume o temor com poucas palavras: “Deixa de gerar renda para o município, impostos. Quem que vai querer investir na nossa região?”.

O presidente da Associação dos Produtores do Vale do Rio do Sangue, Leonardo Silva, destaca que já existe na região uma terra indígena demarcada de 46 mil hectares para menos de 400 indígenas. Ele frisa que a ampliação afeta áreas produtivas e atinge também pequenos proprietários. “Pega inclusive no final o assentamento Banco da Terra, que tem em torno de 30 proprietários de pequenas propriedades, cerca de 100 hectares cada uma”, relata.

Silva questiona a falta de alternativas para as famílias. “A preocupação que as autoridades deveriam ter antes de assinar um decreto para desalojar famílias… no nosso caso, mais de 70 famílias. O que essas pessoas vão fazer? Como é que essas famílias vão sobreviver perdendo essas propriedades?”.

O presidente da Associação ressalta que muitos produtores têm títulos emitidos pelo Estado há mais de três décadas. “Agora, por uma interpretação diferente da lei, tudo deixa de valer e a gente está sendo expulso das nossas áreas”, lamenta.

A insegurança também alcança os trabalhadores. O vaqueiro José Sidelor Ramos Roselim diz temer pelo emprego e pelo sustento. “Estamos preocupados. Nós dependemos dos produtores. Se não fossem eles, nós não estaríamos aqui também. Perder o patrão, perder o emprego. A minha renda sai daqui, meu ganha-pão sai daqui”.

O estudo do Imea aponta que, além da Terra Indígena Manoki, foram homologadas as terras Uirapuru, Nova Lacerda e Conquista D’Oeste, Estação Parecis, e criada a Reserva Kanela do Araguaia. Juntas, essas áreas podem gerar prejuízo de R$ 170,58 milhões e extinguir 498 postos de trabalho.

Para o presidente da Aprosoja Mato Grosso, Lucas Costa Beber, há insegurança jurídica no processo. “Não foi respeitado os critérios. Temos casos de produtor que adquiriu área do Banco Central, produtores assentados da reforma agrária… as pessoas têm documentos, têm raízes nessas terras”, afirma.

Beber também cita ausência de comprovação de presença indígena em algumas áreas. “Vai causar não só danos materiais e econômicos, como também psicológicos. Essas pessoas não têm para onde ir. No mínimo deveria ocorrer uma desapropriação com indenizações justas”.

O vereador de Brasnorte, Norberto Junior, lembra que o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda julga a tese do Marco Temporal. “Até então, todas as ações de demarcação e ampliação estavam suspensas. Então, essa homologação por decisão monocrática da presidência da República vem contra realmente fazer valer a lei e valorizar o direito de propriedade, que está garantido no artigo 5º da Constituição, junto com o artigo 231 e o artigo 232 que compete a questão do Marco Temporal”, pontua.


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